terça-feira, 17 de novembro de 2009

Dom Quixote: O cavaleiro de triste figura




por Julia Priolli


Que ninguém se ofenda logo nas primeiras páginas de O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, quando o autor, Miguel de Cervantes, se direcionar a quem lê com este simpático aposto: "Desocupado leitor". Tendo em vista que a obra tem 1 500 páginas - escritas em duas partes com um intervalo de dez anos entre elas -, o leitor desejaria de fato que desocupado fosse um adjetivo que o qualificasse com precisão. Mas, considerando que na atualidade ninguém dispõe de tanto tempo para leituras de entretenimento, vale a pena entender por que, quatro séculos depois, Dom Quixote foi considerado por um número respeitável de escritores, o melhor livro do mundo. E não se trata apenas do julgamento complicado da crítica especializada. Foi também o livro mais publicado e traduzido no mundo depois da Bíblia. A edição comemorativa de 2005, celebrando seus 400 anos, foi best-seller nos países de língua espanhola.

No Brasil, Dom Quixote é o tipo de livro que ninguém lê mas todo mundo sabe do que se trata. No mundo hispânico a coisa é bem diferente. Ninguém pode dizer o famoso "Não li e não gostei", nem fingir que leu e sair por aí contando a história, simplesmente porque o livro é leitura obrigatória no currículo escolar. Haja trauma! Assim como Camões não é muito popular por aqui, os estudantes hispânicos, salvo raras exceções, não são exatamente fãs de Miguel de Cervantes. Afinal, tudo tem seu tempo para ser admirado e 1 500 páginas para quem não tem maturidade de leitura não são brincadeira. Mas o brasileiro tem o privilégio de ler se quiser. E aquele que se aventurar nas jornadas quixotescas verá que existe muito mais humor do que supõe nossa vã filosofia.

O Gordo e o Magro

O primeiro engano sobre Dom Quixote é achar que o livro trata somente das aventuras do cavaleiro andante. A verdade é que sem o Sancho Pança ele não seria ninguém. A dupla, cavaleiro e escudeiro, com seus respectivos pangaré e mula, são os protagonistas da saga. Um é magro, alto, com a cabeça nas nuvens. O outro é gordo, baixo, com os pés bem fincados no chão. Quixote é um desvairado e Pança, pragmático, enlouquece por ignorância, numa trama que começou assim:

Alonso Quijano era um fidalgo inexpressivo e malsucedido da região da Mancha, na Espanha. Sua única preocupação e ocupação eram as novelas de cavalaria. Abandonou sua propriedade, deixou os bichos e as hortas morrerem e se enfurnou na biblioteca da casa para ler todos os livros que ali havia. E leu tanto que seus miolos secaram. Um dia, vestindo uma armadura ancestral da família, batizou um cavalo esquálido e sem raça de Rocinante, autoproclamou-se dom Quixote e saiu pelo mundo, em busca de aventuras. Chegou a uma estalagem que acreditou ser um castelo, viu prostitutas que tomou por princesas e, em meio àquele delírio medieval, convenceu o dono da estalagem, que achou melhor não contrariar, a batizá-lo de Cavaleiro Andante. Voltou para casa dias depois, totalmente estropiado porque apanhou muito no caminho, para buscar camisas e dinheiro. Enquanto se recuperava, seus amigos mais próximos queimaram sua biblioteca, em uma pequena inquisição, a fim de que ele recuperasse o juízo. Mas, nem bem acordou, dom Quixote saiu para o mundo outra vez, levando consigo Sancho Pança, seu vizinho e futuro fiel escudeiro, a quem prometeu, além de um salário, uma ilha que pudesse governar.

Novelas de cavalaria

Quixote queria mudar o mundo baseado nos princípios nobilíssimos dos cavaleiros, e seguia à risca tudo o que lera nos livros. Quase não comia, porque os cavaleiros deviam estar preparados para todas as privações. O analfabeto Sancho Pança, que não era cavaleiro e tampouco lera novelas do tema, comia - e comia bem -, já que nunca sabia o que viria pela frente. E adiante sempre vinha muita confusão. Dom Quixote atacou um cortejo fúnebre achando que vingava o defunto, libertou meliantes acorrentados acreditando fazer justiça, tentou libertar a santa de uma procissão enxergando uma donzela raptada, lutou contra um rebanho de ovelhas, vendo ali um exército inimigo, entre muitas outras façanhas. O livro tem 659 personagens, 200 deles atuantes. Só aí dá para ter uma ideia de quantas confusões aconteceram, e de todas elas dom Quixote saiu machucado, apedrejado, foragido, à beira da morte. Mas ele jamais ficaria desmoralizado.

Essa é uma das diferenças mais gritantes com as novelas de cavalaria, que Cervantes parodiava. "Os cavaleiros da literatura sempre tinham um narrador que os amparava, que os salvava. Mas dom Quixote vai à desgraça. Se ele mesmo não se justificar, explicando para Sancho que um encantador enganou seus olhos, e por isso ele confundira um moinho de vento com um gigante, o narrador não fará isso por ele", diz Maria Augusta Vieira, professora de literatura Espanhola da USP. Certa ocasião, Quixote saiu tão machucado que Sancho o apelidou de Cavaleiro de Triste Figura, alcunha que o amo adorou, achou digníssimo de sua condição e fez com que se adotasse.

Moinhos de vento

Dom Quixote delirava, seu mundo real era o universo literário da cavalaria, que também nunca existiu além dos livros, mas nem tudo era tão absurdo assim. Claro que lutar contra moinhos de vento achando que fossem gigantes era absurdo, mas ali naquela época tudo aquilo era novidade. "A Espanha, em sua política expansionista, vinha anexando territórios, inclusive os Países Baixos. A tecnologia dos moinhos de vento era holandesa, coisa recente no cenário espanhol", afirma Maria Augusta. Portanto, apesar de o livro parecer um completo elogio à loucura, existem rompantes de realidade histórica ao longo da obra.

A confusão entre fato e fantasia não está só na cabeça do cavaleiro andante. Ela figura na cabeça do leitor também, e tudo por causa dos artifícios de Cervantes para dar à obra ares de registro histórico. Ele afirma, naquele mesmo prólogo em que nos chama de desocupados e onde se diz padrasto e não pai de dom Quixote, que tudo o que será lido está registrado nos anais da Mancha. E faz uma verdadeira mistura de narradores. Quem teria contado essa história seria um mouro chamado Cide Hamete Benengeli, que escreveu em árabe uns manuscritos que foram transcritos por um espanhol a pedido de um narrador onisciente.

Em 1615, Cervantes publica a segunda parte do livro, como continuação da saga e resposta imediata a uma farsa. É que no ano anterior, sob o pseudônimo de Alonso Fernandez de Avellaneda, alguém - até hoje não se sabe quem - escreveu e publicou a segunda parte da história. Cervantes resolveu não entrar em disputas autorais e nem mesmo revelar a identidade do farsante, talvez com medo de eternizar seu nome, e aproveitou o fato histórico de correr por aí uma versão falsa dos desatinos de dom Quixote, fazendo com que o próprio, na sua segunda e verdadeira narrativa, desmentisse as aventuras alardeando que o único Cavaleiro de Triste Figura que existia era ele! Sancho ganha sua terra prometida, que governa com muito bom senso, mas por poucos dias, pois continua a seguir o amo. O escudeiro já fala rebuscado e parece enlouquecer mais que o patrão. Enquanto, num movimento inverso, o cavaleiro vai recobrando a razão e morre em casa, de excesso de juízo, amaldiçoando as novelas de cavalaria.

Doce Dulcineia
O grande amor que dom Quixote mal conhecia

Dulcineia, diziam as más línguas, tinha a melhor mão para salgar porcos de toda a região do Toboso. Embora a tivesse visto não mais de cinco vezes, dom Quixote dedicou a ela todas as suas loucuras. Sempre que acreditava ter salvo alguém, pedia que esse alguém fosse até Toboso contar a Dulcineia da valentia feita em seu nome. De tanto amar, o cavaleiro decidiu alucinar de propósito, pelado da cintura para baixo, fazendo piruetas e compondo sonetos, tal qual faziam seus heróis, quando estavam desesperados de amor, conforme ele lera nas novelas de cavalaria. Quando Sancho revelou a Quixote que ouvira notícias de que Dulcineia andava em trajes de pastora, trabalhando sob o sol inclemente, o Cavaleiro de Triste Figura ficou ainda mais taciturno, convencido de que sua amada fora encantada por inimigos seus.

Saiba mais

A OBRA

O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, livros 1 e 2, Editora 34, 2002, R$ 74 e R$ 84*
* O valor não inclui frete







Fonte: Revista Aventuras na História

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